Entre o início e o final da leitura deste texto, ainda que você não fique sabendo, cerca de duas novas leis, regras ou normas das mais variadas terão sido criadas no Brasil, com um único objetivo: regular algum aspecto da sua vida, dizendo o que é certo ou errado fazer. Ao final do seu dia, elas se somarão a outras 767 regras diariamente publicadas no país. O resultado, ou ao menos aquilo que pode ser medido ao longo das últimas três décadas, envergonharia qualquer autor de best-seller pelo tamanho da obra. Afinal, seriam necessárias aproximadamente 442 mil páginas para comportar tudo.
Como você já deve ter sacado, nenhum ser humano é capaz de lidar com tanta informação, ainda mais se considerarmos que desde 1988 cerca de 96% destas regras já sofreram alguma alteração. Na ponta do lápis, entender e buscar estar por dentro das regras custa às empresas brasileiras aproximadamente R$ 60 bilhões por ano, ou duas vezes o custo do Bolsa-Família.
Na prática, temos uma regra valendo no país para cada 41 cidadãos, ou aproximadamente 5,4 milhões delas, e boa parte compartilha uma mesma função: proibir.
Desde as mais esdrúxulas – e por isso mesmo famosas -, como a proibição de colocar saleiros em cima da mesa de bares e restaurantes em determinados locais do país, até outras pouco conhecidas, as proibições cumprem um papel importante – ao menos na visão do governo – e garantem uma certeza: por aqui, é praticamente certo que ninguém cumpre 100% das regras.
Nem mesmo nossas 1.240 faculdades de direito – um número que supera com folga o resto do planeta somado (um total de 1.100 faculdades) – seriam capazes de produzir advogados o suficiente para defender cada brasileiro que alguma vez na vida já infringiu qualquer uma destas regulações.
Nada disso deveria ser uma surpresa, já que, como o estado da nossa saúde e educação públicas evidenciam, um governo que estabelece para si mesmo a missão de regular tudo a todo instante acaba agindo mal justamente no que deveria ser prioridade.
Como resultado, boa parte das nossas leis e proibições acabam caducando por pura incompatibilidade com o cotidiano dos brasileiros. Ainda assim, há algo de útil nessa história (ao contrário de boa parte destas regras), que você poderá perceber na lista abaixo, que inclui algumas das regulações mais absurdas. A criatividade e a falta de foco de nossos parlamentares parece não ter limite, ao contrário do desejo de efetivamente mandarem no seu dia a dia. Por isso mesmo, pegue a pipoca e aproveite, a sessão é comédia pura:
1. É proibido construir uma abertura entre a cozinha e a sala da sua casa, exceto se for uma moradia popular.
Em um país tão acostumado às reviravoltas e incertezas da economia, o que poderia ser apenas reflexo de sucesso profissional torna-se quase místico. Ter uma casa em seu nome, por exemplo, é praticamente um seguro para tempos difíceis.
Para inúmeros brasileiros, porém, a distância entre ter uma casa própria e garantir que ela trará segurança de fato esbarra em detalhes pouco compreensíveis para uma parcela da população. Na prática, cerca de 14 milhões de famílias vivem sem título de propriedade de seu imóvel, ou seja, de maneira irregular.
A cargo das prefeituras espalhadas pelo país, a regularização fundiária é um tema espinhoso, sujeito a regulamentações distintas em cada cidade. Para algumas delas, a ausência de recuo lateral em determinada medida já basta para impedir que a moradia ganhe o chamado “habite-se”. Em outras, ainda mais exigentes, a mera diferença entre a largura de um ralo no banheiro e aquilo que é determinado pelo código de obras do município pode ser o suficiente.
No caso da prefeitura de Manaus, as exigências avançam ainda mais, chegando a determinar até mesmo a maneira como a cozinha da casa deve ser posicionada em relação à sala. Segundo a prefeitura e seu código, a abertura entre a cozinha e uma sala somente poderá ocorrer caso trate-se de uma sala de jantar, como descrito abaixo:
- 3º – É proibida a abertura de cozinha diretamente para a sala, salvo quando se tratar de sala de jantar, independente, ou nos casos de habitações populares.
2. O Congresso Nacional já votou que é proibido vender maços de cigarros com mais ou menos de 20 unidades.
Considerado o país mais barato da América Latina para consumir cigarros, os chilenos tinham uma pretensão: importar cigarros brasileiros em maços de 16 unidades, algo não existente no país.
Tendo recorrido à indústria brasileira, que já foi considerada a maior exportadora mundial de tabaco e atualmente gera empregos a 180 mil famílias ligadas à produção de fumo no Brasil, a questão poderia ser resolvida da forma mais simples possível, com um lado querendo comprar um produto legalizado e outro querendo vender. Poderia, exceto se a questão não tivesse ido parar no Congresso Nacional.
Em votação realizada em 3 de outubro deste ano, o Congresso bateu o martelo: Não, maços de cigarro não podem ter mais ou menos do que 20 unidades de cigarro.
O resultado, no que depender dos nossos parlamentares, será a importação de cigarros chineses pelos chilenos.
3. O bar que foi proibido de colocar mesas e cadeiras nas calçadas.
Prefeito novo, regras novas. O que poderia ser um retrato da tragédia da descontinuidade de gestões espalhadas pelo país acabou virando uma piada para alguns donos de bar em Caxias do Sul.
Por lá, bares que há décadas funcionavam do modo mais tradicional possível, com suas mesas e cadeiras na rua para servir os clientes, se viram surpreendidos por uma fiscalização que acabou por desenterrar uma legislação criada em 1992, vedando a prática.
De maneira bem humorada, os comerciantes decidiram inovar colocando caminhões estacionados na frente do bar e as mesas nas caçambas dos caminhões, afinal, não há lei que proíba caminhões de estacionarem em frente a bares e muito menos uma que proíba beber na caçamba de um caminhão.
4. Atravessar fora da faixa pode render uma multa.
Ao contrário do que parece, o código de trânsito brasileiro (CTB) não se restringe apenas aos veículos automotores, mas também aos pedestres. Segundo a regulamentação, atravessar uma rua ou avenida fora da faixa implicaria risco não apenas ao próprio cidadão, mas ao trânsito em si.
Casos como este, previstos no artigo 254 do CTB como infração leve (e portanto sujeito a uma multa de R$ 26,50), evidenciam parte do absurdo das legislações brasileiras de um modo geral: prever tudo e determinar punição para qualquer ato, ainda que a fiscalização torne-se impossível.
5. É proibido importar um carro usado.
Que os carros brasileiros estão entre os mais caros do mundo – a ponto de a revista americana Forbes afirmar que apenas rodas folheadas a ouro justificariam tal preço – não chega a ser uma novidade. O curioso neste caso é que o acesso a veículos mais baratos, ainda que usados, é vedado pela legislação brasileira.
Definido por meio de uma portaria do antigo DECEX – o Departamento de Comércio Exterior do Ministério da Fazenda, atualmente uma secretaria -, a norma é bastante clara. No entanto, ao contrário de inúmeras outras legislações brasileiras, não se preocupa em definir ponto a ponto suas especificações.
Segundo a portaria, importar veículos usados é ilegal. Não há, porém, qualquer definição do que seja um veículo usado, exceto para os casos de veículos de coleção com mais de 30 anos. Um veículo que tenha poucos quilômetros rodados poderia ser importado como novo ou esbarraria na lei? Nesse caso, o poder da secretaria é discricionário, não estando sujeito a qualquer regra específica.
Nem mesmo casos em que alguém retorne do exterior e queira trazer seu veículo são definidos, estando sujeitos à mesma lei, exceto se você for membro do Itamaraty, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Neste caso, a importação de um veículo detido por um diplomata brasileiro que retorne de atuação no exterior não apenas é permitida, como também bancada pelo próprio ministério.
6. É proibido a qualquer posto permitir que o próprio cliente abasteça seu carro.
Comuns nos Estados Unidos e na Europa, postos de combustíveis com bombas de auto-serviço – isto é, bombas em que o próprio motorista abastece seu carro – são expressamente proibidas no Brasil desde o ano 2000, por meio de um projeto de autoria do ex-ministro Aldo Rebelo.
Segundo o projeto, o intuito é evitar a perda de empregos na área, preservando, na teoria, cerca de 500 mil vagas pelo país. Mas, quando analisados outros projetos de autoria do mesmo político, como o projeto de 1994 que impedia o setor público de adotar tecnologias que reduzissem a necessidade de mão de obra, o caso se torna curioso.
Ainda mais curioso do que a própria regulação é saber que Aldo Rebelo veio a ser ministro de Ciência e Tecnologia.
7. A lei que proíbe de você de pagar a um amigo por uma carona.
Há algum tempo atuando no Brasil, os aplicativos de caronas pagas como Uber, Cabify ou 99POP enfrentam ainda inúmeras complicações com as legislações de âmbito municipal espalhadas pelo país.
Em nível nacional, a situação ganha mais um complicador. Desde muito antes de tais aplicativos existirem, nosso código de trânsito já previa que pagar por uma carona é ilegal, o que na prática significa dizer que se você e um amigo decidirem voltar da faculdade ou do trabalho para casa juntos e você quiser colaborar com a gasolina, estará cometendo uma infração.
Ainda em 2014, um grupo de amigos de Goiás chegou a ser parado em uma blitz e recebeu uma multa de R$ 5,4 mil por praticar carona paga. Dada a bizarrice da situação, a Agência Nacional de Transportes Terrestres acabou acatando o recurso e anulando a multa.
8. Em algumas cidades, é proibido beber na rua.
Nem mesmo aquela cervejinha do final de semana está a salvo. Pelo interior do Brasil, não são poucos os casos de cidades que decidiram combater tumultos ou violência de uma maneira um tanto inusitada: proibindo o consumo de bebida alcoólica em público.
Em Passo Fundo, no interior do Rio Grande do Sul, e em Chapecó, no interior catarinense, as medidas são rígidas e muitas vezes chegam a doer no bolso do cidadão. Apenas este ano, cerca de 14 pessoas na cidade de Passo Fundo chegaram a receber multas de R$ 502 por tomar uma gelada no meio da rua.
Para outras cidades, a proibição vale para jovens menores de 24 anos ou apenas no final de semana. O certo é que se a segurança pública não resolver, há muitos deputados dispostos a usar a criatividade em prol de uma suposta redução da violência.
9. Café legalizado: só se não for adoçado.
Técnica comum no preparo de café no interior de São Paulo, servir a bebida já adoçada em bares e restaurantes paulistas pode colocar o empreendedor em conflito com a Lei Estadual n°. 10.297/1999, de autoria do Deputado Marcio Araújo.
O texto legal determina que é “obrigatório aos bares, restaurantes e similares, no Estado, ter à disposição do cliente o café amargo, deixando-lhe a opção do uso de adoçante ou açúcar, podendo o estabelecimento comercializá-lo nas duas maneiras”.
A justificativa para a lei é recheada de boas intenções. Araújo se mostrou um homem preocupado com os paulistas diabéticos. Para ele, o grande problema era que “somente os grandes estabelecimentos comerciais oferecem aos seus clientes o café amargo para que eles optem pela adocicação”. Além disso, “muitas pessoas, devido às suas dietas, diabetes ou outras causas, preferem o café amargo”.O pior de tudo é que a lei, ainda em vigor, pode estar totalmente em descompasso com a ciência. Um estudo publicado pela revista Nature sugere que o consumo indiscriminado de adoçantes pode levar ao desenvolvimento de diabetes.